É no cotidiano que se escondem as heroínas brasileiras. Mulheres batalhadoras, donas de si, que não temem confrontos se a causa for nobre
2001. Virada no milênio e na vida de Leoni Margarida Simm. Para muitos, soaria sombrio como as previsões de fim de mundo o diagnóstico de câncer de mama em estágio avançado.
Ela não pensou na morte. Inquietou-se com um pensamento límpido, profundamente enraizado no gosto e no gozo pela vida.
“Quem serão as pessoas que irei conhecer?”
Leoni conheceu pessoas do mundo inteiro.
Foi escolhida como a embaixadora global do câncer no Brasil pela American Cancer Society, integrando a primeira reunião importante nas Nações Unidas sobre as DCNTs (Doenças Crônicas Não Transmissíveis), onde, ao lado de 77 representantes dos países-membros, participou da criação da agenda das principais lutas contra essas doenças em reuniões em Nova York e Genebra. É também ativista da UICC (União Internacional de Controle do Câncer) e da Ulaccam (União Latino-Americana Contra o Câncer da Mulher) e presidente voluntária da Amucc (Associação Brasileira de Portadores de Câncer), com sede em Florianópolis, da qual faz parte há 18 anos.
A Amucc integra o núcleo de ONGs que compõe a Femama (Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama), que no dia 13 de dezembro, conquistou mais uma batalha na luta por diagnóstico rápido e tratamento eficiente.
Foi aprovado no Plenário da Câmara dos Deputados, o projeto de lei da deputada catarinense Carmen Zanotto (PPS) que “determina que nos casos em que a principal hipótese seja a de câncer, os exames necessários à elucidação devem ser realizados em até 30 dias”.
Se aprovado no Senado, um parágrafo será acrescido na Lei nº 12.732, de 2012, conhecida como Lei dos 60 dias, que determina que o tratamento oncológico deve iniciar em até dois meses a partir da confirmação do câncer registrado em exame anatomopatológico.
A mudança parece simples. No entanto, é fundamental. De acordo com o Ministério da Saúde, 65% dos pacientes no Brasil são diagnosticados em estágio avançado. De acordo com o levantamento do Observatório de Oncologia, ferramenta do movimento Todos Juntos Contra o Câncer, em parceria com o Conselho Federal de Medicina, em 2015 o Brasil registrou quase 210 mil mortes provocadas por cânceres.
Para agradecer à vida, a opção pela luta
Leoni é gaúcha, nascida na roça, teve 14 irmãos e desde cedo demonstrou sua força de vontade. A mãe era professora e quando não podia dar aulas, repetidas vezes por ser vítima da violência doméstica, assumia o seu lugar. Tinha na época 10 anos.
Como formação escolheu a sociologia. Trabalhou por anos na área de Desenvolvimento de Pessoas, nos Correios, e morou em diversas cidades brasileiras até chegar em Florianópolis.
2001. Leoni poderia carregar a vergonha de ser uma cancerosa, já que a sociedade gosta de culpar as vítimas e estigmatizar doenças, mas ela decidiu se opor. Seu câncer não tem cura, atingiu os pulmões. O preconceito tem. Lembrou das palavras de uma amiga. “Alguma coisa tu fez para merecer”.
“É que construíram a ideia de que o câncer é motivado por alguma inquietude, mágoa, tristeza – como se não fosse da condição humana essas sensações. E mais, o discurso se esvai ao pensarmos que recém-nascidos, crianças e animais são também atingidos”.
Para agradecer à vida, Leoni optou pela luta. Coordena grupos, dá aulas, palestras, monta projetos, até tirou a roupa em ensaio sensual para o projeto 50 Tons de Rosa para despertar o debate sobre a sexualidade. Tudo para que o número de vítimas seja menor a cada ano. Ela explica que “tem uma coceirinha na alma”, que não a deixa ficar de espectadora de injustiças.
Em abril deste ano, esteve entre as mulheres vencedoras do prêmio Maricota, uma iniciativa da prefeitura de Florianópolis para homenagear as mulheres que fazem a diferença.
Música em ferramenta política
Retrato Falado, álbum vencedor da sexta edição do Prêmio da Música Catarinense, é o espelho irônico de uma história que se repete. O cotidiano de mulheres violentadas pela sua classe, raça e gênero – síntese musical dos estudos cirúrgicos de Angela Davis. Vivência na pele.
Dandara Manoela, autora e interprete de 12 canções, destilou letras potentes, ziguezagueou entre samba e a MBP e converteu música em ferramenta política. Política é cantar a tragédia da escravidão moderna, a dinâmica da exploração, o racismo, o machismo, a alienação – que é a justiça de olhos vendados – e também o amor, os recomeços.
Em letras poeticamente estruturadas, doídas de tanta verdade, Dandara exorcizou seus traumas. A rejeição da mãe que não a quis; o pai alcoólatra; a tia que a criou e morava na casa dos patrões e ela só podia ver durante dois finais de semana em cada mês; a violência sexual sofrida pelo marido da avó paterna, pedófilo com “cara de santo”; a história da bisavó materna, sem nome, chamada na canção de Dona Preta. Origem de uma narrativa abrupta e veloz das memórias das mulheres da família. Lembranças da brutalidade com que foram tratadas. Agressão, cruz, herança maldita, vivida repetidamente num ciclo ancestral de dor.
“Essa música se chama Retrato Falado, é o título do álbum, e nela procuro entender minhas origens e ressignificá-las. É a minha história, é a história delas, é a história de todas nós”, disse.
Dandara é paulista, veio para Florianópolis em 2014 para cursar Serviço Social na UFSC, e causou alvoroço no meio artístico antes mesmo de ser reconhecida como melhor cantora e revelação com a Orquestra Manancial da Alvorada, no mesmo prêmio, ano passado.
O prêmio, no entanto, deu a coragem que ela precisava para buscar financiamento coletivo pelo Catarse. Recebeu contribuição de 415 pessoas e mais dinheiro que havia pedido.
Lançou dia 4 de setembro, no Teatro Álvaro de Carvalho, seu CD, composto em apenas duas semanas de visita às entranhas – muitas descobertas, entre elas, a de ser compositora.
Dandara é a voz do feminino negro. Voz do coro nos cultos da Igreja Adventista da Promessa, voz de indignação nos movimentos estudantis, voz das ruas, dos rolês, dos batuques e carnavais. Voz capaz de trazer à tona lutas e afetos subjetivos que encontram espaço na multidão, que se veem, e se abrigam naquela que “veste a armadura e ainda assim ama leve”.
Mulheres na política
Dia 13 de março de 1934, a médica paulistana Carlota Pereira de Queirós fez história ao se pronunciar pela primeira vez na tribuna do Palácio Tiradentes, na antiga capital, o Rio de Janeiro. Oposição ferrenha a Getúlio Vargas entrou para política ao se engajar na Revolução Constitucionalista, de 1932, prestando assistência aos feridos com ajuda de 700 mulheres que conseguiu atrair para a causa. Foi eleita com 176.916 votos e tornou-se a primeira deputada federal, cargo que ocupou entre 253 homens. Em seu discurso disse que “abriu novo capítulo na história do Brasil, o da colaboração feminina na política”. Luta sem previsão de fim.
Após 84 anos, a advogada Ana Cristina Blasi recebeu da Câmara dos Deputados, no dia 29 de novembro, o diploma Mulher-Cidadã Carlota Pereira de Queirós, pelo seu empenho nessa briga antiga e fundamental para transformação social do país.
Primeira catarinense a receber o prêmio, Ana foi também homenageada pela Bancada Feminina da Assembleia Legislativa de Santa Catarina com uma moção de aplauso, no dia 13 de dezembro.
Nascida em uma família de advogados, se formou em 1991 pela UFSC, mas estagiou desde os 17 anos no escritório do pai, Aluizio Blasi. Também graduado pela federal catarinense, ele ocupou os cargos de juiz do TRE, presidente da OAB, entre 1977 e 1978, e desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. “Conversávamos muito sobre política em casa. Era natural”, disse Ana.
Da sua turma, foi uma das raras mulheres a exercer a profissão. Paralelamente, continuou os estudos e se tornou mestre em Direito de Estado pela UFSC. Entre 2015 e 2017, assumiu como juíza do Pleno do TRE e pode perceber a dificuldade das mulheres durante as eleições. “A principal dificuldade era financeira”, disse.
Ao lado de senadoras, deputadas federais e advogadas conseguiu uma vitória histórica no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), numa sessão presidida pela ministra Rosa Weber, na qual foi aprovada a destinação de 30% dos recursos do fundo eleitoral às candidaturas femininas.
Paralelamente, no tribunal catarinense, foi a porta-voz da campanha “Mulheres na Política. Elas podem, o Brasil precisa”, lançada em 2018, para conscientizar as pessoas sobre a necessidade de facilitar o acesso das mulheres a esses cargos públicos.
Durante esse trabalho, Ana percebeu a dificuldade das pessoas em entender o sistema eleitoral e o quociente partidário e com apoio da rede Mulheres do Brasil lançou uma campanha didática e acessível nas redes sociais sobre o assunto.
Ainda percorreu o Brasil ministrando palestras sobre voto consciente e o empoderamento. Não bastando, foi convidada pela plataforma Politize para conduzir o documentário sobre a experiência das mulheres que concorreram a cargos legislativos em 2018.
A luta não tem previsão de fim. Mas as conquistas são visíveis. Embora, as mulheres eleitas representam apenas 15% da Câmara, esse percentual aumentou 51% entre 2014 e 2018.
Fonte: ndmais.com.br
Notícia publicada em: 31/12/2018
Autor: Aline Torres